quinta-feira, 23 de julho de 2009

Atro Coração - Uma livre adaptação intertextual sobre os limites do amor.

Márcio Barreto
São Vicente/SP
1992/2009

CENA I

Um vídeo (tomada 001) é projetado na tela.




Gabriel levanta-se da cama e caminha em direção ao proscênio. Lilith, bêbada, revira-se sentada na cama. No proscênio, Gabriel cambaleia. Som de queixada (músicos). Cessa a projeção do vídeo. Silêncio.



LILITH (gritando): O que há? (levanta-se num sobressalto e chora) Gabriel!

Projeção foto do cativeiro (cenário)


Gabriel ao ser chamado cambaleia ainda mais.


LILITH (soluçando): Eu tinha treze anos... E estava num lugar como esse... Minha amiga estava mal e vomitava muito... Parecia uma grande idiota feliz... ela tentou se levantar e aí...

GABRIEL: E aí?

LILITH: Eu não sei, mas naquele momento eu me sentia irremediavelmente presa... e o pior, ao ver aquilo eu não desejava ir embora... eu queria ficar (desata a rir).

GABRIEL (rindo): Pare de rir, me conte a história.

LILITH (parando de rir e gritando): Estou ficando idiota (levanta-se e caminha para a esquerda)... Minha cabeça vai explodir... Não, minha história... Minha amiga... Ela se levantou e foi... Foi deitar no sofá e caiu... Bateu a cabeça e o sangue sujou o tapete... Ela estava tão feliz que gargalhava sem parar... Antes nem se notava que ela pudesse sequer compreender a felicidade.

GABRIEL: Gostaria de cair como ela diante de você.

LILITH: Vai vomitar?

GABRIEL: Talvez. (despenca no chão)


Blecaute.


CENA II

Os dois conversam no escuro.


GABRIEL: Você acredita que eu seja louco?

LILITH: Louco?

GABRIEL: Seria melhor voltar.

LILITH: Você está muito cansado, seu olhar está perdido, tão distante.

GABRIEL: É possível.

LILITH: Está acontecendo algo que eu não possa saber?

GABRIEL: Sofro.

LILITH: Por quê?

GABRIEL: Amo.

LILITH: E o que você pretende fazer?

GABRIEL: É impossível não acontecer, sem dúvida.

LILITH: Poderia ser mais claro?

GABRIEL: Você conseguiria?

LILITH: Não sei.

GABRIEL: É engraçado. Você arrancou minha pele e agora estou nu até a alma. Quando olho para os seus olhos vejo apenas sonhos e impossibilidades, é tudo tão estranho, só posso me ver dentro de você.

LILITH: Parece que está chovendo, mas aqui é tão difícil escutar.

GABRIEL: Se eu lhe pedisse você me mataria?

LILITH: Só se fosse aos poucos... Para aumentar o prazer da minha tristeza... Você não percebe que lhe matei há muito tempo?

GABRIEL: Pode ser. Talvez estejamos ambos mortos.

LILITH: Talvez. É essa a sensação de crepúsculo no corpo?

GABRIEL: É. Você vê também? Meu coração é como essa sombra, atro, escuro como uma madrugada.



CENA III

Música “Babel”. Vídeo em primeira pessoa de Gabriel dirigindo um carro, passando por ruas e avenidas até avistar Lilith na calçada. Cessa a projeção do vídeo. Um corredor de luz se acende no palco, Lilith caminha em direção à rotunda. Acende-se um foco sobre Gabriel (de costas para o público) que está dentro do carro (apenas as cadeiras).


GABRIEL: Por favor. Você sabe onde fica a rua Guaibe?

LILITH: Sei, fica um pouco longe, mas é fácil de chegar. Na terceira à direita você vira e segue até a quarta rua, depois do segundo semáforo você pega a rua da padaria, tem uma padaria bem na esquina...

GABRIEL: Imagino se fosse difícil... É que eu não sou daqui... Você vai para aquele sentido?

LILITH: Mais ou menos.

GABRIEL: Bom, você poderia me ajudar. Quer uma carona?


Lilith demonstra dúvida, olha para seu relógio e entra no carro. Apaga-se o corredor de luz em Lilith. Inicia-se a projeção de vídeo (sem música, apenas com os sons do carro e da rua) em primeira pessoa do trajeto do carro.

GABRIEL: Você vai parar antes ou depois?

LILITH: Antes.

GABRIEL: Para onde você vai?

LILITH: Em direção a praia... É melhor virar nessa rua... (tosse e sente-se tonta) Eu não sei direito, talvez seja melhor na próxima...

GABRIEL: Acho que você não está se sentindo muito bem. Seu rosto está pálido... Quer um pouco de refrigerante? Vai lhe fazer bem. Eu vou abrir a janela (abre a janela do carro). Está melhorando?

LILITH: Acho que sim, não precisa se incomodar.

GABRIEL: O que lhe aconteceu?

LILITH: Nada, eu estava numa festa com pessoas que falavam e riam alto demais, escutavam música chata, era tudo tão sufocante. Acho que bebi demais. Nossa! Era um saco. Ah! Vire a direita.

GABRIEL: Cicuta e hipocrisia! É bem natural que você esteja assim. Mas nem tudo está perdido. O vento está lhe fazendo bem, seu rosto está mais vivo... É verdade, seus olhos são muito bonitos.

LILITH: Você é muito gentil ou um ótimo mentiroso... Pode virar nessa rua, olha a padaria. O que você costuma fazer em noites como esta?

GABRIEL: Raptar lindas donzelas.

LILITH (sorrindo): E o que você faz com elas?

GABRIEL: Arranco seus corações.

LILITH: Ótimo, já estou farta do meu. Não, não, vire a esquerda. Onde você pretende me levar?

GABRIEL: Talvez a lua?

LILITH: Exatamente para onde eu queria ir.


Blecaute.



CENA IV

A um canto do palco os músicos executam “Chuva Oblíqua”, ao término, um dos músicos produz som de batidas na porta. A luz sobre os músicos se apaga e, simultaneamente, acende-se um foco sobre Gabriel que abre a porta e entra no quarto. Deixa uma bandeja com o café da manhã e arruma alguns objetos. Lilith acorda. Vídeo do cativeiro.


GABRIEL: Dormiu bem? Espero que sim.

LILITH: Minha cabeça está doendo... Onde estamos?

GABRIEL: Perto.

LILITH: Perto da onde? Nossa! Acho que bebi demais. Preciso ir embora.

GABRIEL: Ir embora?

Lilith levanta-se (tonta) e começa a pegar suas coisas.

LILITH: Onde está minha bolsa?

GABRIEL: Você ainda está fraca, descanse mais um pouco, depois eu levo você (conduz Lilith até a cama).

LILITH: Que horas são? Eu preciso ir...

GABRIEL: Você não está bem... Relaxe. Acho que está com febre, ontem quando estávamos no carro você passou muito mal e desmaiou, sua pressão estava baixa... É melhor descansar. Assim que você melhorar vamos embora. Qualquer coisa é só me chamar que estarei ao lado. Aqui tem tudo o que você precisa no momento. Descanse.


Blecaute.



CENA V

Vídeo (tomada 002).




Lilith e Gabriel estão no chão, amarrados um ao outro tentam se desvencilhar de uma corda imaginária.

LILITH: Quem é você que protegido pela escuridão vem descobrir meus segredos?

GABRIEL: Como poderia dizer quem sou, se o que sou poderia me tirar de você?

LILITH: Gabriel? É você, eu sei... Mesmo que eu escutasse uma única vez a sua voz eu jamais a esqueceria. Como chegou até aqui, no meio de tantas pessoas e de muros tão altos? Se alguém lhe vir será a morte.

GABRIEL: Não haveria como não lhe encontrar e não será a morte motivo para me impedir de lhe ver.

LILITH: Você morrerá.

GABRIEL: Temo menos a morte do que a falta do seu amor.

LILITH: Como você descobriu onde estou?

GABRIEL: Um coração apaixonado descobre qualquer coisa.

LILITH: Você me ama, Gabriel? Mas quanto você me ama? Será que me julga tola? A verdade é que estou apaixonada também, mas não quero que me julgue fácil, caso contrário lhe direi que não até que me convença da necessidade brutal do seu amor.

GABRIEL: Lilith, eu esperei por esse...

LILITH: Não, não fale nada. É muito repentino, não deve ser assim, pelo menos nesse momento (desatam os nós e levantam-se do chão). Boa noite! Que você possa escutar o que meu coração ouve.



GABRIEL: Vai me deixar assim?

LILITH: Assim como?

GABRIEL: Sem a esperança de sentir que você me ama?

LILITH: Eu lhe amo muito antes de lhe conhecer, Gabriel.


Correm em direções opostas e de repente param como se uma outra corda imaginária os prendesse. O foco de luz sobre Lilith se apaga, ficando apenas o de Gabriel que tenta se libertar. Apaga-se o foco sobre Gabriel que sai de cena.




CENA VI


Um foco acende-se sobre Lilith que está deitada e acorda de um pesadelo, gritando. Gabriel abre a porta e entra no quarto.


GABRIEL: Está tudo bem?

LILITH: O que está acontecendo? Por que me trouxe aqui? Onde estamos?! Meu Deus, quem é você?

GABRIEL: Calma, você está muito nervosa.

LILITH: Você não pode me prender aqui! Quem é você?

GABRIEL: Não posso responder.

LILITH: Como não pode responder? Deixe-me sair, vamos, saia da frente (avança em direção à porta e Gabriel a impede).

GABRIEL: Acalme-se! Eu não posso deixá-la sair, não me obrigue a usar a força.

LILITH: Quem você pensa que eu sou? A filha de algum milionário, algum político importante? Você se enganou, não há como minha família pagar um resgate.

GABRIEL: Eu sem quem você é. Não se trata de dinheiro.

LILITH: De onde eu lhe conheço? Já nos vimos outras vezes?

GABRIEL: Eu estou apenas obedecendo ordens. Não posso lhe dizer mais nada.

LILITH: Ordens de quem?

GABRIEL: Já disse que não posso falar.

LILITH (irritando-se): De quem? Vamos, diga!

GABRIEL: Entenda uma coisa, você não tem muitas opções. Por hora acalme-se, você não conseguirá arrancar nada de mim.

LILITH: Você tem um cigarro?


Gabriel dá um cigarro a Lilith.


GABRIEL: Digamos que você será minha hóspede por um tempo.

LILITH: Hóspede? Você é louco?! Você me prende em um lugar que nem imagino onde seja e vem com essa conversa de hóspede?! Eu exijo que você diga por que está me prendendo aqui. Por quê? Seu imundo, imbecil (começa a agredi-lo), tire suas mãos de mim!


Gabriel desfere um tapa em Lilith.


GABRIEL: Não, não era assim... Eu... Eu estou apaixonado por você.

LILITH: Ah! É isso?!


Blecaute.



CENA VII


No escuro os músicos produzem sons metálicos. Acende-se um foco sobre Gabriel que anda até o centro do palco, pára e olha a sua volta.


VOZ I (OFF): Acalme-se homem. O que aconteceu? Por que está tão nervoso?

VOZ II (OFF): Uma tragédia! Minha filha foi raptada.

GABRIEL: Não! Ela não foi raptada. Lilith é minha esposa.

VOZ II (OFF): Como?

GABRIEL: Sabíamos que o senhor não permitiria nosso casamento. Por isso casamo-nos às escondidas enquanto o senhor viajava a trabalho. Lilith me ama!


Sons metálicos. Vídeo de câmera de segurança mostrando Lilith esmurrando as paredes. Gabriel sente dores na cabeça e senta-se no chão.


VOZ III (OFF): Prontos? Então vamos começar a gravar. O que torna um casamento feliz?

GABRIEL: Nós acreditamos que são muitos os fatores fundamentais para um bom relacionamento. O amor e o equilíbrio, o respeito, a cumplicidade, a simplicidade.

LILITH (OFF): A verdade é que não sabemos explicar. Nós simplesmente nos damos muito bem.

VOZ III (OFF): E vocês não brigam? Às vezes não pensam em como seriam suas vidas se não estivessem casados?

GABRIEL: Brigamos. É inevitável, mas aprendemos com nossos erros. Além do mais não temos problemas financeiros, respeitamos nossas individualidades e apoiamos uma ao outro.

LILITH (OFF): Temos nossos amigos, nossos empregos, viajamos. Não estamos dizendo que não temos nossas divergências e discussões, mas no geral nos entendemos. Gabriel é muito calmo e amável. Enfim, nós nos completamos.

VOZ III (OFF): Muito bem. Agora quietos, mantenham a expressão. Isso mesmo (som de máquina fotográfica). Obrigado pela entrevista.


Gabriel sente dores na cabeça novamente. Sons metálicos.


VOZ II (OFF): Como? Quer dizer que você a rapta e a obriga casar em uma capela qualquer?

GABRIEL: Para o senhor minha palavra não vale nada. Creio que será melhor escutar sua filha. Peço licença para trazê-la aqui.

VOZ I (OFF): Pois bem, traga-a.

GABRIEL: Aqui está minha esposa. Perguntem-lhe por que se casou comigo.

VOZ II (OFF): Senhora, seu pai acusa Gabriel de tê-la raptada. É verdade?

LILITH (OFF): Que meu pai me perdoe, mas casei-me com Gabriel.


Blecaute.


CENA VIII


Um foco se acende sobre Lilith que está em pé atrás da porta.


LILITH: Escute, você não pode fazer isso. Você disse que me ama e se me ama verdadeiramente, não pode me deixar presa aqui. Este quarto é muito abafado, não tem janelas. Eu preciso ver o céu, respirar ar puro. Aqui eu mal consigo respirar. Estou sofrendo muito, acordei com náusea e dor de cabeça. Seu eu ficar muito tempo aqui, eu morrerei. Quanto tempo você pretende me deixar presa? Já não é o suficiente?


Do outro lado, um foco se acende sobre Gabriel que abre a porta. Som da porta abrindo.


GABRIEL: Depende.

LILITH: Do quê? De um dia eu amar você? Prefiro morrer.

GABRIEL: Procure encarar os fatos de frente, Lilith. Eu lhe amo, não faria nada para lhe magoar, mas não posso deixá-la ir embora. Demorei muito para lhe encontrar.

LILITH: Você é hediondo.

GABRIEL: No momento certo você poderá ir.

LILITH: Aqui é insuportável. Eu preciso respirar. Escute, eu tenho claustrofobia e mesmo que não me ocorra uma crise, meu corpo reage, meus pulmões ficam fracos e adoecem rápido. Preciso de luz, me movimentar com mais liberdade, respirar. Respirar. Eu preciso respirar. Você está me sufocando.

GABRIEL: Você tentará fugir.

LILITH: Não. Eu prometo, não fugirei, não gritarei, não farei nada, pode me amarrar. Esta casa é muito afastada, ninguém nos verá.

GABRIEL: Com certeza. A pessoa mais próxima deve estar a quilômetros daqui. Eu darei tudo o que você precisar e quiser, qualquer coisa, mas ainda é cedo para deixá-la sair.

LILITH: Eu estou apenas pedindo ar puro!

GABRIEL: É muito perigoso. Não sei se posso confiar em você.

LILITH: E eu não sei se posso respirar por mais tempo aqui.

GABRIEL: Se eu a levar terei que amarrar suas mãos.

LILITH: Quando?

GABRIEL: Talvez à noite. Vou pensar.


Blecaute.


CENA IX

O palco escuro, música “Pó de Estrelas”, acende-se um foco sobre os músicos. No centro do palco, Gabriel acende e apaga velas em um movimento contínuo.

GABRIEL (repetidas vezes): Hoje é domingo, pé de cachimbo, cachimbo é de ouro, bate no touro, o touro é valente, bate na gente, a gente é fraco, cai no buraco, o buraco é fundo, acabou-se o mundo.

A cena acaba com a última vela sendo apagada.


CENA X


Lilith está ajoelhada no chão rezando compulsivamente.


LILITH: Meu Deus, não sei mais há quanto tempo estou presa. Sei que meu pulmão está uma merda. Será que vou morrer? Sempre penso o mesmo. Meus nervos estão à flor da pele, mas no fundo as coisas são de outro modo. Seu olhar é perdido e penetrante. Nada de horrível, nada de manias sexuais. Ele respeita meu corpo. No começo tomei todos os cuidados possíveis, ficava atenta a qualquer movimento, procurava sempre encará-lo de frente. Imaginei que fosse fácil fugir, mas todas as vezes que tentei, ele se mostrou de uma agilidade surpreendente. Perdi sua confiança. Ele não me puniu, mas agora não confia mais em mim. Estou a espera dele. Uma coisa estranha, ele me fascina ao mesmo tempo que sinto desprezo e ódio. Todos meus parentes devem estar loucos de preocupação, imaginando que estou morta. Como é possível que ele me ame? Como é possível amar uma pessoa que não se conhece? Procura desesperadamente me agradar, mas ele é louco. Todos os loucos agem assim. (modificando seus gestos e tom de voz) Todos os loucos incendeiam-se. Romãs e liras (música “luz”). Música. De onde vem essa música que não escuto e entretanto me fustiga o ventre? Febre, tenho febre e me perco em fogo. Mas tenho que ter calma mesmo dentro de todo desespero. Vou matá-lo. Eu o seduzirei e depois quebrarei seu pescoço. Ele ficará jogado no chão tentando respirar e parar de gozar. (sons de mulheres rezando). Vamos nos apressar (anda de um lado para outro). Precisamos ir para a cama o mais depressa possível, não quero mais esperar, não sinto mais dor, estou doente e seremos felizes. Num instante levarei você nos braços.


Começa a dançar, sente náuseas e desmaia. Gabriel entra correndo. Cessa a música.


GABRIEL: Linda senhora desfalecida! Quero o resto dos sonhos que lhe cobriram a noite. Levanta que vou lhe mostrar o inferno, enquanto faço da sua saliva um manto para meu corpo sujo.


Blecaute.


CENA XI

Acende-se uma luz sobre Llilth que sobe para o trapézio. Outro foco se acende sobre Gabriel (com asas de anjo) que está embaixo dos tecidos (circo) olhando Lilith subindo ao trapézio.
GABRIEL: Só critica o amor desesperado quem nunca se desesperou de amor... Aqui está quem amo e não deveria amar, Lilith... Que me importa se goza sobre mim, e sorve aquilo que poderia ser meu filho? O que importa é que goza comigo e aqueles que não se tornaram meus filhos vivem dentro dela, ainda que por alguns instantes em ambos os lábios...
LILITH (no trapézio): Ai de mim!
GABRILEL: Lamenta! Mas se quer o que também eu quero não deveríamos estar assim...
LILITH: Gabriel, Gabriel! Ah! Por que você, Gabriel? Não poderia ser outro e deixar apossá-lo até que viesse o esquecimento e restasse apenas o gozo?
GABRIEL (à parte, sussurrando): Continuo ouvindo-a mais um pouco, ou lhe respondo? O homem padece da aquilo que lhe acomoda...

LILITH: Anda Gabriel! Porque nem eu nem você queremos saber quem somos, mas o que podemos fazer com nossas mãos, pés, braços. Suas asas só têm serventia se voarem até mim, agora...
GABRIEL (dirigindo-se à Lilith): Sim, aceito sua verdade como ela é. E só poderia ser assim (sobe pelos tecidos, lentamente).
LILITH: Quem é você, que encoberto pela noite, procura descobrir meus segredos?
GABRIEL: Aquele que deveria convencer, mas foi por você convencido.

LILITH: Meus ouvidos ainda não beberam cem palavras sequer de sua boca e já reconheço o tom do meu anjo-não-caído...
GABRIEL: Estou caído e você não vê? Olha o quanto me expus!
LILITH: Não lhe vejo, pois meus olhos não alcançam sua distância, e mesmo perto, não lhe fitariam através de sua luz. Perdeu o medo da punição? Se alguém lhe surpreender aqui será o fim.
GRABRIEL: Ai! Há mais perigo em seus olhos do que em toda loucura e solidão.
LILITH: Por nada neste mundo desejaria a sua solidão.
GRABRIEL: Preferiria nunca ter lhe visto a perdê-la.
LILITH: Não chame o que sinto de pureza, caso contrário não sorveria, faminta, o que vem de você...
GABRIEL: Os que não podem amar também sentem amor...
LILITH: Estremece dentro de mim, ao lhe ouvir, há algo que acelera e palpita e chego a agoniar. Você me ama?
GRABIEL: Juro pela luz do outro lado desta lua, que clareia de prata as minhas asas.
LILITH: Jura pela lua inconstante. Mas se quer saciar sua curiosidade, eu lhe prefiro alado e puro, condição que me embebeda da mesma inconstância lunar: desejar e depois não e novamente desejar a quem tenho ao lado e ao mesmo tempo, distante...

GABRIEL: Nunca me amará pura e constantemente?...
LILITH: Prometo! Vai agora junto com a noite, sabendo que é meu eleito (faz menção de descer do trapézio).
GRABRIEL: Vai deixar-me sair assim insatisfeito?

LILITH: Você ficou satisfeito antes? Pois então voltará a acordar lembrando do meu cheiro e coberto pelos restos do nosso amor.

GABRIEL: Vem comigo!
LILITH: Não posso. O que tinha já lhe dei. Alguém se aproxima. Vai embora que logo estarei em seus sonhos (começa a descer).
GABRIEL: Fosse eu apenas sono e dormisse pra sempre desse jeito!

Gabriel desce dos tecidos.

Blecaute.


CENA XII
No escuro os dois atores correm pelo palco afoitamente, param e começam a rir alto. Correm novamente, som de queda. As luzes se acendem, Gabriel está caído no chão, Lilith pisa em seu pescoço, levanta-o pelos cabelos, esfrega seu rosto em suas coxas e o repeli. Apaga-se a luz. Sons de respiração ofegante (intenção de orgasmo feminino). Acende-se um foco sobre Lilith que está deitada na cama tendo uma crise de falta de ar. Gabriel entra no quarto.


GABRIEL: Se você julga que me comovo com esse truque de ficar deitada está esganada.
LILITH: Você é um idiota! Não passa de um verme que rasteja na própria loucura. Não se aproxime de mim.
GABRIEL: Ótimo. Eu posso esquecê-la por completo. Que tal apodrecer aqui, sozinha?
LILITH: Eu sinto uma enorme vontade de lhe matar, seu eu pudesse faria agora. Não se preocupe, eu jamais daria queixa de você. A cadeia é pouco para o que você merece.
GABRIEL (gentilmente): Cale-se! Sou eu quem manda. Posso fazer o que eu desejar, não se esqueça.

Lilith levanta-se e se ajoelha diante Gabriel.

LILITH: Estou muito doente. Tenho pneumonia ou algo pior. Você precisa chamar um médico.
GABRIEL: Deite-se. Você sabe muito bem que não está doente. Se tivesse com pneumonia você não conseguiria nem se levantar.
LILITH: Mas meu pulmão dói muito, não consigo respirar direito, a noite não durmo e mal consigo comer.Veja como estou quente. Esse quarto é muito abafado.
GABRIEL: Tem ar de sobra.
LILITH: Se eu não estivesse doente, você acha que eu me sujeitaria a pedir alguma coisa a você, depois de tudo? Eu estou doente de verdade.
GABRIEL: É só uma gripe, passa logo.
LILITH: Se você não chamar um médico eu morrerei. Você vai me matar. Estou com muito frio. Por favor, estou com medo.
GABRIEL: Você está indisposta, é apenas isso. Acalme-se, vou trazer algo para lhe reanimar e num instante você ficará boa.

Gabriel pega uma bebida e serve Lilith.

LILITH: O que é isso?
GABRIEL: Beba, você vai gostar. Mas não beba depressa porque é forte. Sem dúvida você imagina que eu já tenha bebido hoje.
LILITH: Não. Por quê? Você bebe sempre?
GABRIEL: Não posso lhe explicar tudo, mas me comportei como um covarde com todos aqueles que amei.
LILITH: Isso não importa, não nesse momento. Você está me assassinando e finge que não acredita. Eu sei, morrerei em condições desonrosas. Tenho-lhe tanto horror que chego a confundir com paixão. E isso me enoja a tal ponto que tenho medo (bebe cada vez mais). Estou pensando: se eu continuar bebendo, você me dirá “deite-se” e eu deitarei, “lamba o chão” e eu lamberei... Eu ia ter uma bela morte... Não há nada que me seja mais odioso, fazer prazerosamente tudo que você gostaria que eu fizesse.
GABRIEL: Você sabe cantar?
LILITH: Por quê?
GABRIEL: Queria que cantasse para mim... Eu a invejo por beber nessa situação. Beba mais um pouco. Por que você não canta?
LILITH: Não sei cantar.
GABRIEL: Dançar, você dançaria para mim?
LILITH: Depende. Se eu conseguir me levantar.
GABRIEL: Eu vou tocar a música que você gosta. (Toca Canção do mar na escaleta).

Lilith levanta-se, toma mais uns goles da bebida, inicia um balé desajeitado. Pára, começa a chorar e volta-se para Gabriel que a abraça e a leva de volta para a cama.

GABRIEL: Sente-se aqui. Não fique brava. Talvez você não entenda, mas preciso que você fique louca. Preciso disso para não morrer antes de você.
LILITH: Você morrerá? Está dizendo a verdade?
GABRIEL: Não quero morrer... Quero viver com você, tenho medo da morte... Penso nisso vazio... Tenho um medo terrível... Você... E depois eu... Dois mortos... E o quarto vazio.
LILITH: Não, é inútil. Fica ao meu lado, mais perto, me abraça...

GABRIEL: Não.

Um vídeo (tomada 001) é projetado na tela. Gabriel levanta-se da cama e caminha em direção ao proscênio. Lilith, bêbada, revira-se sentada na cama. No proscênio, Gabriel cambaleia. Som de queixada (músicos). Cessa a projeção do vídeo. Silêncio.



LILITH (gritando): O que há? (levanta-se num sobressalto e chora) Gabriel!


Gabriel ao ser chamado cambaleia ainda mais.


LILITH (soluçando): Eu tinha treze anos... E estava num lugar como esse... Minha amiga estava mal e vomitava muito... Parecia uma grande idiota feliz... Ela tentou se levantar e aí...

GABRIEL: E aí?


Blecaute.



CENA XIII


Lilith está sentada no chão envolvida por um lençol branco. Projeção simultânea de fotos das cenas que não ocorreram na peça. Pausa na foto de Gabriel entregando flores à Lilith.


LILITH: Quem será o filho da puta que pagará as flores e o enterro se eu morrer de amores? Morrerei sem esperança nos braços do inimigo que me amará e em cólera queimará meu corpo e o jogará ao vento, beijando meus lábios de lua.


Sons de vento e relógios. A luz se apaga em resistência.



CENA XIV


Gabriel está em pé, ao lado de um lençol branco estendido no chão.


GABRIEL: Eu sei que você está dormindo e não acordará, passei horas inteiras olhando seus olhos fechados. Você não acordará, mesmo que o impossível fosse o último cigarro que fumássemos ainda insones. Ilhas de insônia, partes imaginárias do que não conheço, exílios da minha loucura, mundos infinitos, pequenos. Não, você não está dormindo, nem sonhando, nem fingindo. Você não está sonhando e eu não posso mais sonhar. Meu corpo ainda clama o seu, minha boca se contorce. Imagino coisas, coisas que você talvez pudesse gostar. Mas agora a tarde cai e sua morte me apavora, me faz tremer. Perto de mim a frieza dos seus lábios me traz um sorriso tão triste e horrendo que me condena a uma solidão que recusarei, que não terei estômago para suportar. E mesmo assim eu repetiria o mesmo convite: Quer uma carona?

Gabriel pega um revólver e o coloca na boca. Apaga-se a luz. Som de disparo.


____________________________

Referências

“O colecionador” – John Fowles

“A Bela e a Fera” - Marie le Prince de Beaumont

“Romeu e Julieta” - William Shakespeare

“Cenas de um casamento” – Ingmar Bergman

“A lua na sargeta” – David Goodis

“Segunda Cena do Balcão inspirada em Romeu e Julieta” – Christiane Amici