quarta-feira, 22 de junho de 2011

Atro Coração por Christy-Ane Amici

Christy-Ane Amici - foto: Biga Appes

Texto: Christy-Ane Amici


O que posso dizer de Atro Coração? E de suas personagens?

Vou começar falando sobre mim e minha relação com esta peça.

Eu comecei a ensaiá-la em 1992, acho, mas em meados de 1993 eu e meu colega de atuação, no caso, autor e diretor da peça, tivemos, cada qual, mudanças em nossas vidas que requereram nosso tempo integral para ajustes e conseqüentemente deu-se o fim dos ensaios.
Nunca mais pude voltar a atuar. A faculdade bem sucedida, prometendo uma boa profissão, os estágios profissionalizantes, o primeiro emprego, o primeiro filho, o primeiro ninho, tudo colocou o teatro no status de coisa de juventude.
Nunca mais vi Marcio até que um dia quando o Orkut já tinha cansado a beleza de muitos internautas, nos encontramos através de amigos. Falamos sobre a peça. Ele tinha perdido o texto. Eu tinha a primeira cópia. Entreguei-a a ele com a condição de que se ele um dia a remontasse eu faria parte dela. O trato foi selado, embora eu tivesse feito na verdade uma brincadeira irônica e não um acordo.
Mas eis que um dia Marcio me liga, dizendo que tinha reescrito a peça e que sua parte no trato estava cumprida: podíamos começar a ensaiar.
Curioso é que eu que até alguns meses não tinha tempo pra nada, agora tinha tempo de sobra: home-work.
Começamos a ensaiar e a “viajar” em todos os sentidos e significados, quase dezoito anos depois da primeira montagem.
Eu diria que a peça é toda ela cheia de símbolos e alguns, nós mesmos vamos decifrando aos poucos. Por exemplo: as cores dos figurinos. Branco, preto, vermelho, e um pouco de jeans. E aí está: o bem, o mal, o amor, são facilmente identificáveis, mas o indigus brim... É aquilo que resiste ao tempo e às situações mais difíceis, o que é atemporal - e mais do que isto o que não diferencia classe social, credo, ou etnia, nem carrega preconceitos, o jeans é apolítico, afilosófico, acultural.
Voltando à Terra... Só sei que quando faltava apenas a limpeza dos gestos, o aprimoramento das coreografias, algumas filmagens externas, eis que nossas vidas, a minha e de Márcio foram arrebatadas com mudanças que chacoalharam nossas vidas de tal forma que levaria, como de fato levou, muito tempo para nos recuperarmos.
Foi quase um ano de recesso.
Insistimos. Voltamos. E alguns meses depois eu adoeci, logo após interpretar uma cena de Lilith na pinacoteca. Mais de um mês da minha vida foi dedicada à cama e à tosse... Curioso que a personagem passa por isto, mil vezes pior, mas eu me senti em laboratório (que no teatro quer dizer passar por experiências que aflorem sensações que levem a entender/perceber os sentimentos e atitudes da personagem).

Neste tempo acamada pensei se tudo isto que relatei até agora não tinha uma explicação mística - já que a peça fala do mítico/religioso.

Afinal a peça coloca frente a frente o anjo que provavelmente é o mais conhecido entre os fiéis, por ser o mais atuante nas passagens bíblicas e a mulher banida por Deus, propositadamente esquecida por todos, com apenas uma coisa em comum: o amor romântico.

Então Deus e o Diabo estão na pele de Capuleto e Montéquio, mas não impedem a aproximação do casal, forçam-na no campo fértil para as experimentações: a Terra, provavelmente cada qual apostando suas fichas no resultado final deste amor: a transformação, a destruição.

Estaria presente aqui o xivaísmo, onde a destruição serve ao campo da construção de algo novo. Lógico que só a renovação seria possível, principalmente a Gabriel, que saindo ou ficando neste estado de amor, provavelmente nunca mais teria sua condição bíblica de outrora.

Na estória da peça Lilith apenas experimenta o que detesta: a submissão, e embora já a tenha experimentado, desta vez não possui a condição de fugir desta situação, vai ter que vivê-la até o fim.

Lilith com certeza está revoltada com tudo isto, mas ainda se lisonjeia por ser admirada/amada como poucas e sua essência não fora afetada a tal forma que não haja regresso, ela provavelmente voltaria a seu estado de antes, se quisesse, quando saísse de sua condição humana. Talvez apenas teria aprendido a lição de Che Guevara: teria mais ternura.

É. Talvez os mitos não tenham gostado da situação em que a peça os coloca e talvez briguem conosco tentando nos fazer não encená-la...

Mas voltamos a ensaiar. E a data de estréia está marcada.

A diferença agora é que entendemos muito melhor a estória por de trás da estória a tal forma que chega a ser um crime não dividir o que aprendemos com o público. Por isto eu escrevo.

Estava presente até aqui a Roda de Sansara, que eu entendo como um ciclo vicioso no qual as pessoas por suas essências tendem a girar, ou provocam reações por suas ações que fazem girar a tal roda, sempre de forma semelhante, em intensidade, sentido e resultado.

Nós os atores ensaiamos a peça e quando ela fica quase pronta, algo nos suga e aceitamos a adversidade como atriz principal no palco de nossas vidas e a peça fica como elenco de apoio.

Basta! Agora pedimos licença aos mitos, mas vamos representá-la. Só assim quebraremos este ciclo vicioso em que nos envolvemos, eu e Marcio, ao decidirmos interpretar Gabrile e Lilith apaixonados.

E não há nada de errado em amar, ou encenar uma estória, ainda que herege (certamente é assim que alguns dirão). O que importa é o que se faz com isto. Se o amor, por mais impuro que pareça aos olhos dos outros, servir à evolução pessoal ou até social, haverá redenção. Se uma estória fantasiosa servir a apontar nossos defeitos e qualidades reais e colocar nossas atitudes viciadas em xeque-mate e assim darmos por encerrada esta fase da vida, para começar outra nova, sem o mesmo hábito, haverá transformação.

Mas por que Gabriel? Por que Lilith? Por que mexer com eles?

O amor romântico, eu acho, sempre tende a ser mais insuportável para quem tinha a vida equilibrada e feliz. Porque ele vem feito ciclone varrendo as certezas, jogando todas as conquistas, colocando como local suportável o centro: o fator central: o próprio amor.
Como mostrar isto senão fazendo sentir amor romântico, um ser inocente/ puro? Em paz no seu mundinho... Mostrar como este tipo de amor pode abalar o mais firme dos pilares. E como a condição de bondade em nós, não deveria estar ligada à concepção que temos de nós mesmos e nem à noção do que é certo ou errado, pois se estas idéias sofrerem oposição, enfrentarem adversidades, então decidiremos agir sem altruísmo.

É mais ou menos como um fiel que ao ler ou ver a peça nos programe o inferno como fim de nossos dias. Onde está sua bondade agora? Não pode simplesmente ser bom e desejar-nos o céu, só porque suas bases religiosas saíram de órbita na estória contada?

É, como dizem, é fácil ser bom, quando está tudo bem, o difícil é manter-se bom na adversidade. Eis aí o primeiro teste. Fiel, mantenha-se desejando o bem até mesmo a nós pobres mortais que não sabemos o que fazemos... (mas estamos tentando...).

Lilith com certeza foi escolhida a dedo para estrelar a peça. Primeiro porque ao que dizem, o Concílio de Tentro (que ficou famoso no Filme O Código Da Vinci) varreu-a da Bíblia como forma de acabar com a sua força. Oras se se julga e condena um criminoso, ele está lá na estória lembrando o crime e sua punição. Se você dá cabo do criminoso sem alarde, seria como se ele nunca tivesse existido, tampouco seu crime. A maior das punições é ser ignorado /esquecido.

Então os seres humanos do clero acharam que a parte escura da lua era muito pouco para o que Lilith merece. Ela merece não existir, jamais.

O mais curioso é seu crime original: Feita do mesmo barro que Adão, queria a igualdade, inclusive sexual. Chega a ser engraçado um Livro Sagrado se preocupar com a posição sexual dos amantes, mas a briga entre o primeiro casal do mundo foi porque ela queria ficar por cima de vez em quando e Adão achava aquilo humilhante...

Em outras palavras ela queria gozar à maneira dela, conduzindo a relação sexual e ele deveria achar que isto era uma crítica “Amorzinho, eu gosto assim e não como você faz.”.

Os religiosos que ainda contam sua estória fazem-na parecer vingativa. Ela foi “dar mais que xuxu-na-serra” abandonando Adão. Transou com tantos quanto pode, aperfeiçoou-se e tornou-se não só a primeira mulher, como também primeira mulher fatal!

Ou talvez ela só foi tentar gozar, já que Adão não a satisfazia. Mas uma mulher querer sentir prazer é um perigo, sempre foi visto assim, em quase todas as religiões. Pelo simples fato que a sensualidade e a perfeição sexual, somadas, é o domínio sem armas e sem força bruta, mas é forte exatamente como o amor romântico. È o ciclone jogando suas certezas e colocando o objeto de sua adoração no centro calmo, onde o céu é limpo, no momento seguinte a isto, você já pode chamar de amor romântico, dá no mesmo.

Como punição por ser tão ousada Deus a castiga, varrendo-a para debaixo do tapete lunar, pro lado de baixo, que ninguém vê.

Aí sim, vingativa por falta de compreensão, passa a seduzir homens nos sonhos entre outras tantas maldades que lhe atribuem, pois a mulher que não quer ser sub-julgada ao homem merece receber os créditos pelos feitos e por aqueles maus-feitos que ninguém sabe quem foi, mas bem que podia ser ela... Não estou aqui para defender Lilith não. Eu sei bem qual a força de uma mulher na vingança, ela é capaz de se destruir desde que leve consigo seu alvo e se sentirá feliz mesmo sucumbindo por isto. E faria tudo de novo, sorrindo...

Mas bem se sabe que a religião para dominar a mulher deixou um rol bem fechado de atitudes permitidas a ela, e qualquer coisa fora ao permitido: era punível com rigor. Certa vez eu li que a inquisição matou milhões a mais do que o nazismo... Dá para imaginar tamanha perversão? E que a igreja veio a público pedir perdão. De minha parte, só me vem à mente é um trecho da música de Gilberto Gil “Não há o que se perdoar, Por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”.

Então a peça é assim, através do amor, mistura tudo. Espalha as qualidades e defeitos das personagens e os distribui de maneira, lógica, ou seja, pela probabilidade do que aconteceria à pessoa, se exposta àqueles acontecimentos.

Gabriel está apaixonado, mas também revoltado - perdeu sua condição de anjo e certamente não voltará a tê-la. Provavelmente valeria à pena, se vivesse em plenitude seu amor romântico. Lilith está sob domínio de um homem e deve obedecê-lo, pois como mulher não tem testosterona para forçar uma mudança através da luta, nem palavras que a façam voar. Está na sua forma mais desconfortável: a da submissão, onde a ternura e a compreensão que ela nunca teve é a chance para a reviravolta.

Só que como qualquer humano, eles não sabem de sua vida passada. E a vida que tiveram na Terra até se encontrarem foi a que realizaram através de seus sentimentos e atos. E o amor que sentem embora esteja ali neles, é vivido de outra forma, não são mais dois mitos recém apaixonados se escondendo dos Capuletos e Montéquios. São dois apaixonados errando e aprendendo o que fazer com o amor que sentem.

A peça repete cenas, falas e atos, como na Roda de Sansara. É uma clara referência ao fato de que sempre vamos encontrar parceiros de atitudes iguais aos anteriores e viveremos fatos repetitivos enquanto agirmos da mesma forma que os provoque.

No caso de Lilith e Gabriel, a peça é uma das enumeras encarnações deles, sempre trilhando, por suas essências, semelhantes caminhadas. O fascínio que ela exerce sobre ele através da sedução, a honraria que ela sente pela devoção dele, ainda que exagerada, o fazem girar pelos erros do amor (posse, domínio, desespero, insegurança) e isto só cessará o dia que um deles, ou ambos, tomar atitude completamente nova, quebrando o ciclo vicioso que permitirá o novo.

O ensinamento aqui é a grande chave da peça: “Não importa o que é o amor, mas o que você faz com ele.” de Márcio Barreto.

E o que vale pro amor, vale pra tudo em você, para o mundo, para a vida. “Não importa o que é o mundo, ou sua vida, mas o que você faz com eles”. “Não importa o que você é, mas o que você faz com o que você é.”

C. Amici

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